quarta-feira, 11 de julho de 2007

ÓDIO

Ódio, escrito em 04/08/2006, foi meu primeiro e, ate hoje, único conto escrito. Mais um exercício, nasceu em horas de grande cólera ...

Ódio

Nasceu

Um trago. Um gole. A cabeça dói muito. Ódio, muito ódio. Vontade de sair correndo. De gritar seu nome para que todos saibam que vou te matar. Filha da puta! Ordinário! Canalha! Quero te ver morto. Quero te ver sofrer. Quero que se arrependa todos os dias pelo dia que cruzou meu caminho pela primeira vez.

Estes eram os devaneios de Carlos. Estava só em um bar. Seu olhos, vermelhos de ódio e inchados pelo choro, tremiam sobre a fraca luz do balcão. Mais uma dose ai ô cara! Me dá mais uma pinga e me acende o cigarro aqui!

Carlos nunca foi um cara muito calmo. Sempre foi de levar as coisas a extremos. O tipo de pessoa que te ama de forma muito intensa e, desta mesma forma, pode vir a te odiar. E pobre foi o Ricardo que despertou-lhe todo este ódio. Ricardo era colega de trabalho de Carlos, um cara boa pinta, conversa fácil. Moreno, solteiro, vida feita. Andava lá pelos seus 31 anos e já morava e dirigia o que era seu. Era letrado e cativante. O oposto de Carlos. Carlos era um homem rude. Veio da roça ainda menino para morar com uma avó paterna que lhe prometeu estudo e felicidade. Um engano. Em toda sua vida, Carlos só teve decepções.

Assim que chegara a cidade sua avó pôs-lhe para trabalhar como empregado da casa. Fazia de um tudo. Varria, limpava, esfregava. Só comia quando lhe era permitido. Dormia mal pois sua angustia, desde novo, já o consumia. Criou-se assim até seus dezessete anos. Letrou-se porque uma vizinha, Dona Maura, percebendo que ali criava-se um demônio, convenceu sua tutora a coloca-lo em um grupo próximo à sua casa. Lá, Carlos, entre brigas e suspensões, estudou até a oitava série. Concluiu, por assim dizer, o primeiro grau, e saiu. Voltou ao trabalho.

Um belo dia, para sua alegria, a velha morreu. Ao encontrá-la morta – enfartada, suspeitou ele – nem se deu o trabalho de chamar o rabecão. Juntou suas coisas, afanou-lhe o pouco dinheiro que achou – morta ela não ia precisar mesmo – e saiu pela porta. Deixou-a bater sem ao menos olhar para trás. Desde então foi vivendo de biscates. Virou chapa de caminhão - era um homem forte e o trabalho duro ajudava-lhe a espantar seus pensamentos. Depois foi ambulante, vendedor de sapatos e, por fim, entrou como contínuo em uma grande companhia de seguros. Era velho, é verdade, para o cargo. Mas, pelo menos uma vez em sua vida a sorte lhe sorriu e, não se sabe por que cargas d’água, a contratante foi com sua cara. Talvez tenha fitado seu olhar sério e pensado:

- Esse, ao menos não ficará a vagabundear pelo centro. Tem cara de que nada gosta. Será o perfeito burro de carga!

E Carlos então na firma entrou e começou a fazer carreira. Tinha razão a gerente. Ele não comia, não dormia, não ria. Trabalhava com afinco. Sempre de cabeça baixa. Nunca a olhar ninguém nos olhos. Era sempre prestativo. Cumpria calado as ordens que lhe eram passadas. Nunca discutia. Não tinha amigos, não saia com os colegas. Quando saia para beber, bebia só. Embebedava-se só, pagava e ia embora. Nunca dava vexame. Nunca escutavam sua voz.

Formou-se

Mas isso mudou um dia. Tinha de mudar. Carlos fora promovido a arquivista. Era bom para ele e para todos. O arquivo da firma era um quartinho abafado e escuro. Ninguém gostava de trabalhar lá. Ninguém a não ser alguém quem não reclamava. E lá foi Carlos. Pegava, catalogava, etiquetava e arquivava. Dias e dias fazendo sempre o mesmo. Às vezes tinha de atender ao telefone, gesto que lhe incomodava bastante. Tinha até de ser pró-ativo, coisa que nunca soube como fazer. Foi nessas atendidas que conheceu Ricardo, hoje seu maior desafeto.

Ricardo era do Departamento de Qualidade da empresa. Como dito, um cara bacana, conversado. Fazia amizade com todos sem nem mudar a posição de suas sobrancelhas. Pois Ricardo passou a constantemente solicitar a Carlos pastas e documentos. Uma freqüência que, no início, incomodou Carlos, mas que aos poucos foi derretendo o gelo de sua alma e estes passaram a ter animadas conversas durante horas a fio. Ricardo descia até o arquivo para buscar documentos, Carlos subia até o Dep. de Qualidade para levar relatórios e os dois passaram a trocar boas papeadas entres estes encontros. Carlos mudara. Passou a sorri, não frequentemente, mas pelo menos a quem lhe sorrisse primeiro. Começou a olhar os outros nos olhos e, por conselho de Ricardo, a vestir-se com mais elegância. Não que tivesse recursos para cobrir-se com luxo mas, ao menos combinando cores e estampas. Os dois foram tornado-se amigos. Saiam juntos para beber. Ricardo apresentou a Carlos o caminho da Zona e esquentou seu coração com as mais belas putas da cidade. Ajudou-o a se soltar. Fez-lo sair de seu casulo e embriagou-o com as luzes da noite. Carlos nunca tinha se sentido tão vivo. Sua vivacidade, ainda que tímida, estampava-se no brilho de seus olhos e nos esfolados de seu sexo. Não passava, agora, um dia sequer sem visitar as putas. Era já conhecido na zona. Chamavam-no Carladinho – clara alusão ao seu jeito ainda tímido.

Ricardo, sempre presente como seu guia, lambuzava-se em seu orgulho de ter feito de Carlos um “cara legal”. Divertia-se contando a todos como Carlos era bicho do mato e como hoje tornara-se quase uma malandro do Rio. Carlos nunca se constrangia. Pelo contrário, ficava feliz em ver que era assunto nas rodas. Achava graça de sua desgraça. Nem lembrava mais de sua avó morta ou da vizinha que lhe salvou a juventude e lhe garantira emprego agora que velho. E os dias passavam depressa. Trabalho de dia, butecos a noite e puteiros madrugada a dentro. Quase que uma via sacra. Ricardo, Carlos e uma meia dúzia de outros colegas. Carlos rendia-se cada vez mais as alegrias da vida. Já exibia um celular ao cinto, sapatos novos de couro reluzente e suas roupas agora era impecavelmente passadas, engomadas e combinadas. Passaram-se dias, semanas e meses. A alegria era quase infinita. Quase, porque alegria de mais dura pouco. A de Carlos durou até de mais e já era hora de acabar.

Se consumiu

Carlos passou a perceber que Ricardo ligava-lhe cada vez menos. Não mais o convidava a sair pela noite e raramente descia ao arquivo como em outrora. De princípio, ficou apenas curioso mas, com o passar das semanas, começou a sentir saudade do amigo e falta do mentor. Ligava a Ricardo na empresa e este sempre lhe dizia que depois conversariam. Quando o chamava ao celular, sempre caia na caixa postal. Seu desespero aumentava à medida que os dias sem notícias se sobrepunham. Parou de sorrir. Suas roupas começavam a se desganhar novamente. Às putas, que tanto amava, não as via há tempos. Parecia que tinha voltado ao ovo. Que seu casulo novamente fechara-se sobre sua cabeça. Agora apertando-lhe, causando-lhe dor. Com mais uns dias, sua preocupação e sua saudade foram emoldurando-se em ódio. Um ódio profundo. Um espeto atravessado em suas vísceras. Uma raiva incontrolável de Ricardo.

- Quem esse filha da puta pensa que é? Tira-me de meu sossego, mostra-me a vida e depois me larga? O que será que está a dizer de mim ao outros agora? “olha, lá vai Carlos, aquele capial.” Filha da puta! Filha da puta! Desgraçado aquele Ricardo. Some assim. Nem dá notícias. Não me atende, sempre se esquiva. Aposto que fez algo errado e está com vergonha de me falar. Filha da puta!

E seu ódio a Ricardo crescia dia-a-dia. Carlos não mais comia direito. Tinha voltado a ser quem era. Uma pedra animada. Um pedaço de pau com braços e pernas. Mas uma coisa estava diferente nele. Agora sua cabeça martelava-o mais que nunca. Seu ódio a Ricardo tornara-se ódio a todos. Odiava as putas por serem putas. Aos colegas por não dar-lhe a devida atenção. Ao ex-amigo que deixou-lhe solto à vida quando aprendia a nadar nela.

Passou a freqüentar o mesmo bar a que fora centenas de vezes com Ricardo para tocaiá-lo. Queria olhar o, agora rival, nos olhos e faze-lo provar de toda sua raiva. Tinha de fazer com que ele enxergasse o mal que lhe fez. Sentia sua cabeça martelar os momentos que passara em companhia do amigo. Sentia-se acuado ao perceber que foi usado como um fantoche, uma distração, e isso só fazia aumentar seu desconforto. Até tentou, por vezes, desviar seus pensamentos tentando convencer-se de que conseguiria outras amizades. Mas, sua paranóia não o deixava sossegar. Sentia-se mal, tinha vontade de vomitar as vezes. Golfava e tossia aos berros para que todos a sua volta tivessem certeza de que era um homem que sofria. Chorava de raiva e cerrava os punhos para sentir que tinha forças para acabar com Ricardo, quando o visse. Mas não tinha certeza se era isso que queria. Não queria Ricardo morto. O queria sofrendo. Vivo e sofrendo. Queria que Ricardo soubesse tudo que o fez passar e que levasse isso para sua eternidade.

Um dia, Carlos parado ao balcão, viu entrar Ricardo. Ele vinha acompanhado de uma bela garota e mais uns poucos colegas da firma. Riam-se todos como se a noite estivesse uma diversão só. Carlos fitou-o e sentiu sua cabeça esquentar. O barulho do bar não mais era ouvido por ele. Suas mãos, cerradas, avermelhavam-se tamanha era a força com que ele as espremia. Por um minuto, parou fitando o rival, lembrando de todos os momentos que tiveram juntos e recordando o plano que traçara para vingar-se. Uma vingança cruel. Que levaria Ricardo ao mesmo inferno em que este o deixou. Ricardo e sua turma passaram por ele como se este não existisse e, sem muito se fazer notar, Carlos puxou o braço do amigo. Ricardo olhou Carlos e assustou-se com o semblante daquele que, tempos atrás, fora seu grande companheiro de farras.

- Carlos, o que faz aqui? Está sumido. Como anda lá no arquivo?
- Maldito seja você Ricardo. Porque me ignora? O que fiz para tal? Era meu amigo, compartilhávamos a vida e agora me deixa só? O que fiz? Diga!

- Ora Carlos, deixe de meninices. Sabes bem que não tenho só você como amigo. Cansei. Cansei de sua companhia. Quero outras. Quero beber outras doses de vida que a sua não mais me sacia.

- É assim? A mim, você não quer mais? Minhas conversa não mais te divertem? Pois odeio-te Ricardo. Odeio-te mais que possa eu odiar a qualquer outra coisa. Odeio-te mais que o próprio ódio pode ser! Quero que morra. Que sofra como me fez sofrer.

- Ah Carlos, nem é para tanto néh? Parece que me namorava ora! Vá viver sua vida e deixe-me viver a minha.

- Vou deixá-lo sim. Vou deixá-lo viver sua vida mas assueguro-te que esta nunca mais será dourada e doce como dantes foi.

Dito isso, Carlos pega em eu bolso um canivete de fumo, hábito que carregava desde a infância na roça. Ricardo de princípio não reconhece o objeto mas, ao ver-lhe melhor, recua e pede a Carlos que se acalme.

- Acalmar-me o caralho, seu puto desgraçado. Você quer viver sua vidinha de playboy? Pois viva. Viva bem, se conseguir.

Dito isto, Carlos abre seu canivete, passa-lhe o dedão sobre a lâmina para conferir o fio e, certo que este cortará, rasga sua goela de uma orelha a outra. Um corte fundo até o meio, ponto onde a dor tira-lhe as forças e o impede de exercer a pressão ideal ao instrumento, mas suficiente para romper, cortar, arrebentar e dilacerar todos os vasos e veias de que precisava. E Ricardo, paralisado com cena, vê-se lavado em um esguicho de sangue de sai com pressão do corte do amigo. Carlos, terminada a ação, baixa a mão, olha o sangue no canivete, o limpa com a camisa e guarda no bolso. Sobe então seus olhos até fitar os de Ricardo e, por um instante, saboreia todo o terror que causara ao ex-amigo. Volta então a baixar os olhos e começa a sentir que sua camisa gruda-lhe ao corpo, empapada de sangue que está. Não sente dor, apenas uma estranha secura na garganta. Um gosto de ferro. Como se estivesse a chupar um parafuso. Esforça-se para pensar em sua família, que deixara na roça, mas dela não se lembra mais. Pensa então nas putas da Zona que mais gostava e um sorriso modesto muda-lha a face. Repentinamente, sente a cabeça pesar-lhe mais que uma tonelada. Puxa para traz, como se uma corda amarrada a seu pescoço estivesse querendo fazer-lhe deitar de costas. Ergue o queixo, tombando a cabeça para traz até que o corte em sua garganta se abre por completo. A esta altura, Ricardo já corre ao balcão pedindo que lhe acudam. Carlos não ouve mais nada. Sente somente que o peso à cabeça vai lhe puxando para traz até que para. Completamente embebido em seu sangue ele cai no chão do bar. O silêncio é total. Em sua face, somente um modesto sorriso em memória às suas doces putas.

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